window.dataLayer = window.dataLayer || []; window.dataLayer.push({ 'event': 'author_view', 'author': 'Redação Brasil 247', 'page_url': '/ideias/em-artigo-exclusivo-silvio-almeida-explica-a-importancia-das-lutas-anticoloniais-no-sahel-africano' });
HOME > Ideias

Em artigo exclusivo, Silvio Almeida explica a importância das lutas anticoloniais no Sahel africano

Entre o neocolonialismo e a possibilidade revolucionária

Bandeiras de Burkina Faso, Níger e Mali são vistas durante uma manifestação convocada pela Junta do Mali para apoiar sua decisão de deixar o bloco regional da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental ''CEDEAO'', em Bamako, Mali, em 1º de fevereiro de 2024 (Foto: REUTERS)
Redação Brasil 247 avatar
Conteúdo postado por:

Por Silvio Almeida, no Substack 

“Imperialismo é um sistema de exploração que ocorre não apenas na forma brutal daqueles que vêm com armas para conquistar o território. O imperialismo geralmente ocorre em formas mais sutis, um empréstimo, ajuda alimentar, chantagem. Estamos lutando neste sistema que permite que um punhado de homens na Terra governe toda a humanidade”.
— Thomas Sankara


“Se não temos ouro, temos coragem. Se não temos helicópteros, temos o povo. E é com o povo que vamos vencer.”
— Ibrahim Traoré

Colonização e degeneração

Há regiões do mundo em que os imes da história se condensam com tal intensidade que parecem iluminar, em clarões abruptos, as contradições de toda a humanidade. O Sahel é uma dessas regiões. Fronteira viva entre o Magreb e a África subsaariana, entre os desertos do norte e as esperanças do sul, essa faixa de terra é palco de uma das mais vigorosas lutas por soberania do nosso tempo. Mali, Níger e Burkina Faso carregam em sua história a marca de séculos de espoliação, reconfiguração forçada e promessas traídas — mas também de levantes, insubmissão e projetos de emancipação radical. Ali, o tempo não é um fio linear, mas um tambor de ritmos complexos: ora de dominação, ora de rebelião, ora de reinvenção.

A colonização sa redesenhou o Sahel como província extrativa. Os impérios autóctones — Gana, Mali, Songhai — foram desarticulados, seus sistemas de produção coletivos desmantelados, suas instituições comunitárias submetidas ao arbítrio de uma racionalidade mercantil e racial. O algodão de Sikasso, o ouro de Kayes, o urânio de Arlit: recursos que continuam a alimentar os centros de poder do Norte global enquanto grande parte das populações locais permanece sem o à energia, saúde ou soberania.

Mas não apenas o solo foi ocupado. O imaginário também foi sequestrado. A independência formal de 1960 trouxe novas bandeiras, mas manteve velhos contratos.

No Mali, o governo socialista de Modibo Keïta, primeiro presidente do país após a independência, tentou romper com esse ciclo. Inspirado pelo panafricanismo e pelo socialismo, nacionalizou setores estratégicos, instaurou um modelo de economia planificada e promoveu políticas de alfabetização e valorização da cultura mandinga. Keïta buscava construir um Estado soberano em uma região ainda tutelada, nas sombras da antiga metrópole.

Mas o sonho de um Mali autônomo colidiu com a reorganização dos interesses ocidentais na África durante a Guerra Fria. Em 1968, foi deposto por um golpe militar liderado por Moussa Traoré e, anos depois, covardemente assassinado por seus algozes, sob custódia do próprio Estado que ele havia ajudado a fundar. Sua morte foi lenta, silenciosa, provocada por torturas, privação de cuidados médicos e abandono — um aviso para qualquer outro que ousasse atuar fora do script colonial.

Em Burkina Faso, Thomas Sankara encarnou, duas décadas depois, a possibilidade de um novo início. Chegou ao poder em 1983, fruto de uma revolução popular que recusava a continuidade da submissão econômica e política à França. Em poucos anos, Sankara transformou o Alto Volta em “Burkina Faso” — “terra dos homens íntegros” —, redistribuiu terras aos camponeses, desafiou frontalmente a dívida externa e mobilizou mulheres, estudantes e trabalhadores para reconstruir o país.

Sua política de ruptura foi simultaneamente econômica, cultural e simbólica. Reduziu os salários dos ministros, enfrentou as elites locais, instituiu políticas públicas de saúde e educação em larga escala e denunciou com coragem os mecanismos globais de dominação. Seu discurso nas Nações Unidas em 1984 permanece um dos mais poderosos libelos contra o imperialismo contemporâneo. Mas o mundo não perdoa os que ousam falar a verdade em voz alta: Sankara foi traído e executado em 1987, aos 37 anos, em um golpe patrocinado por forças internas e externas interessadas em restaurar a antiga ordem.

Foi, como sintetizou Samir Amin, “o último revolucionário honesto” de sua geração.

Já no Níger, a trajetória seguiu um padrão semelhante de desilusão com a independência formal. Embora o país tenha conquistado sua autonomia política em 1960, permaneceu estruturalmente subordinado à França, especialmente por meio do controle do urânio de Arlit — mineral estratégico explorado pela estatal sa Areva (atual Orano), responsável por cerca de 70% do fornecimento de combustível nuclear da França por décadas.

Apesar de contar com uma das maiores reservas de urânio do mundo, mais de 80% da população do Níger não tem o à eletricidade. Em 2023, o ex-presidente Mohamed Bazoum foi deposto por uma junta militar liderada por Abdourahamane Tchiani, que ou a integrar, com Mali e Burkina Faso, a Aliança dos Estados do Sahel (AES). O Níger, que por décadas fora tratado como protetorado energético francês, ensaia agora um rompimento tardio com o neocolonialismo — ainda que envolto em tensões internas, riscos geopolíticos e ambiguidades programáticas.

É nesse vácuo que emergem os atuais processos de militarização. A ascensão de juntas militares no Mali (Goïta), em Burkina Faso (Traoré) e no Níger (Tchiani) não é explicável por nostalgia autoritária, mas pela saturação de um modelo civil de governo subordinado a interesses estrangeiros. A formação da Aliança dos Estados do Sahel (AES), a ruptura com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e a expulsão das tropas sas são gestos que indicam uma vontade de reconfiguração histórica, mesmo que ainda envolta em contradições.

Achille Mbembe afirma que nas zonas de exceção contemporâneas o poder se afirma por meio da produção da morte. Mas há mais: há também a produção do abandono como método de governo. O jihadismo, que também é uma ameaça à segurança, e a expressão deste abandono em que a juventude não encontra caminhos para o futuro. E, como advertia Fanon, uma sociedade que abandona seus jovens fabrica sua própria desintegração.

A resposta do Ocidente a essa crise foi previsível: drones, bases militares, “guerra ao terror”, operações especiais, ONGs disciplinadoras. A Operação Barkhane, lançada pela França em 2014, foi a maior intervenção militar estrangeira no Sahel desde a descolonização. Com cerca de 5.000 soldados em seu auge, pretendia combater o terrorismo islâmico, mas acabou servindo, sobretudo, para proteger rotas comerciais, instalações de mineração e regimes aliados a Paris. Após oito anos de ocupação e desgaste, foi encerrada oficialmente em 2022, sem transformar nenhuma estrutura econômica nem resgatar comunidades da exclusão. O jihadismo persiste porque o sistema que o alimenta (e dele também se nutre) permanece intacto.

É nesse cenário que emerge Ibrahim Traoré, o jovem capitão de Burkina Faso que tem sido saudado — e tem se apresentado — como herdeiro de Sankara. Sua chegada ao poder reacendeu esperanças populares em meio aos escombros de um continente assombrado por novas formas de pilhagem. Mas Traoré governa sobre ruínas — ruínas de instituições corroídas, de uma segurança comprometida, de uma confiança pública dilacerada por décadas de traição, submissão e promessas ocidentais vazias.

Sankara, ainda que tenha enfrentado um mundo profundamente desigual, teve diante de si um campo de forças relativamente multipolar, um Estado em funcionamento e uma sociedade animada por um vigor revolucionário que pulsava em cada bairro de Uagadugu, em cada lavoura, em cada escola erguida pelo próprio povo. Traoré, por outro lado, está cercado. E não apenas por forças jihadistas ou sanções regionais — mas por uma arquitetura global que criminaliza qualquer gesto de autonomia e sufoca toda tentativa de refundar o mundo a partir do Sul.

Exigir dele pureza doutrinária ou coerência revolucionária absoluta seria confundir idealismo com análise histórica. As revoluções, sobretudo aquelas que nascem sob cerco, não se fazem sob o signo da linearidade, mas da contradição. Um revolucionário em tempos de ofensiva imperial não pode ser julgado pelos códigos que caberiam apenas em tempos de calmaria. Ele é, antes de tudo, uma tática viva: molda-se às urgências do presente sem trair o horizonte emancipador.

Portanto, a aproximação da AES com a Rússia e a China deve ser lida nesse contexto: não como uma substituição ideológica do Norte pelo Leste, mas como uma tentativa de recompor margens de soberania em um mundo hostil. A Rússia oferece segurança; a China, infraestrutura. Nenhuma das duas propõe um socialismo real. Mas ambas representam alternativas ao sufocante monopólio ocidental que historicamente se alimentou da fraqueza africana. A multipolaridade não é emancipação em si — mas é uma condição para que ela seja possível.

É preciso reconhecer que há riscos reais nesse processo — mas há também uma direção. A AES, ao propor uma moeda própria, ao romper com o Franco CFA e ao iniciar projetos energéticos autônomos, ensaia um novo caminho. Ainda não se trata de um projeto socialista. Falta-lhe, por ora, uma reforma agrária profunda, uma industrialização sob controle popular, uma arquitetura institucional que recoloque o povo no centro das decisões. Mas há ali um movimento — e isso, em um continente habituado à repetição da tragédia, já é extraordinário.

***

Ibrahim Traoré não é apenas uma resposta pragmática à decomposição do Estado burquinense. Ele é, antes de tudo, uma figura simbólica e, portanto, profundamente política. Sua juventude, sua postura reta, sua farda sem adornos, suas palavras afiadas contra a hipocrisia internacional — tudo nele evoca uma nova gramática da esperança. Seu nacionalismo não é xenófobo nem retrógrado: é uma forma de dizer “basta” à dependência estrutural, uma convocação para a autodeterminação radical. E seu internacionalismo não é abstrato: é encarnado na recusa da tutela sa, no chamado à solidariedade entre os povos africanos e na denúncia do duplo padrão das potências ocidentais.

A figura de líderes como Traoré não é um acaso da História — ela é uma necessidade que o próprio povo forja em momentos-limite. As massas não se movem apenas por diagnósticos, mas por símbolos. Não se entregam ao sacrifício apenas pela razão, mas por imagens vivas de possibilidade. É por isso que o imperialismo, velho conhecedor das paixões humanas, emprega seus arsenais mais sofisticados — que vão do assassinato, am pela destruição de reputações, chegando até a intervenção militar — contra figuras que ameaçam redesenhar o imaginário político mundial. A morte de Sankara não foi apenas a supressão de um líder: foi uma tentativa brutal de enterrar o que ele representava.

E o que ele representava era precisamente isso: a irrupção do impossível no centro do real. Thomas Sankara foi o cartógrafo de um novo mundo. Sua figura não se limita ao carisma pessoal ou ao radicalismo de suas reformas. Sankara é a lembrança incômoda de que é possível viver de outro modo. De que a política pode servir ao povo, de que a economia pode ser solidária. A sua pedagogia revolucionária, feita de ações e de palavras, de violão e de tribuna, de austeridade e de poesia, fundou um novo repertório político-afetivo para o povo burquinense — e para toda a África.

Esse é o lugar mais profundo de sua contribuição: Sankara não apenas governou. Ele sonhou coletivamente. Despertou o povo do pesadelo colonial, devolvendo-lhe o direito de imaginar. E é justamente por isso que sua memória permanece perigosa para o status quo, e por isso também que Traoré é visto com tanta desconfiança pelos que se nutrem da dependência alheia.

Hoje, ao empunhar a espada simbólica de Sankara, Ibrahim Traoré se torna mais que um presidente: ele se torna portador de um novo imaginário. E toda revolução começa por aí. Pois é na ordem do sensível — na fala que convoca, na postura que inspira, no gesto que rompe — que se abrem as fendas do real por onde pode emergir um mundo outro. Traoré, como Sankara, compreendeu que a política não é apenas gestão de escassez, mas criação de sentido.

Essa é a tarefa histórica que recai sobre seus ombros. E é por isso que, como ensinava Fanon, “cada geração deve, na relativa opacidade de sua época, descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la”. Traoré parece tê-la reconhecido. E nós, que clamamos por um novo mundo, devemos defendê-lo — não como ídolo, mas como possibilidade. Porque homens como ele não surgem com frequência. E quando surgem, carregam o futuro nos olhos e a coragem dos povos nos punhos.

E o Brasil com isso?

Do outro lado do Atlântico, o Brasil observa — ou deveria observar — esse processo com atenção. A história do Sahel é a história do Brasil em espelho, ao menos por três razões: Aqui também a colonização arrancou raízes, subordinou estruturas e tentou nos convencer de que a dependência era um destino natural; aqui também o liberalismo chegou prometendo progresso e deixou para trás desigualdade, precariedade e obediência; aqui, a herança africana se apresenta diante de nós, de tal modo que só podemos nos conhecer a fundo se olharmos para o ado, o presente e, principalmente, para as perspectivas futuras inscritas no Continente Africano.

Celso Furtado, em Formação Econômica do Brasil (1959), nos ensinou que a modernização periférica não é desenvolvimento: é adaptação subordinada à lógica do centro. Ruy Mauro Marini, em Dialética da Dependência (1973), demonstrou que a superexploração do trabalho não é uma anomalia, mas o próprio pilar da acumulação capitalista nas formações dependentes. Já Florestan Fernandes, especialmente em A

Revolução Burguesa no Brasil (1975), alertou para o risco de uma democracia sem povo, gerida por elites antinacionais e herdeiras diretas da escravidão, incapazes de romper com as estruturas do ado que sustentam seus privilégios.

Moniz Bandeira, por sua vez, em A Segunda Guerra Fria (2013), mostrou como a política externa brasileira sempre esteve atravessada por uma disputa assimétrica com os centros imperiais, especialmente os Estados Unidos, e como a América do Sul e a África foram submetidas a estratégias comuns de contenção, vigilância e bloqueio ao desenvolvimento autônomo. Para Bandeira, a integração do Atlântico Sul sob domínio das potências ocidentais é uma continuidade da lógica colonial com novos instrumentos.

Essa tradição crítica brasileira é, em si, uma forma de insubmissão teórica ao pensamento dominante. E é nesse ponto que o espelho entre o Brasil e o Sahel Africano se revela não apenas diagnóstico, mas também horizonte de luta. O que une essas duas margens do Atlântico Sul é o desafio comum de reinventar a política para além da tutela — seja ela militar, econômica ou epistemológica. O Brasil, assim como os países do Sahel, precisa romper com o pacto tácito de obediência que o mantém à margem da soberania verdadeira.

Por isso, olhar para o Sahel é olhar para nós mesmos. É ver, condensado em três países africanos, o dilema de todo o Sul Global: repetir a farsa da modernização sob tutela ou reinventar a política a partir das ruínas. O que está em jogo ali não é apenas a soberania de uma região, mas a possibilidade de que a periferia do mundo reconquiste o direito de sonhar — e de construir, com seus próprios meios, os instrumentos desse sonho.

❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

Rumo ao tri: Brasil 247 concorre ao Prêmio iBest 2025 e jornalistas da equipe também disputam categorias

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Cortes 247

Relacionados

Carregando anúncios...
Carregando anúncios...