Os campos de concentração offshore dos EUA
Os prisioneiros nos campos de El Salvador são forçados a dormir no chão ou em confinamento solitário no escuro
Publicado originalmente no CounterPunch em 12 de junho de 2025
Nossos campos de concentração offshore, por enquanto, estão em El Salvador e na Baía de Guantánamo, Cuba. Mas não espere que permaneçam lá. Uma vez normalizados — não apenas para imigrantes e residentes deportados pelos EUA, mas também para cidadãos estadunidenses —, eles migrarão para o território nacional. É um o muito curto de nossas prisões, já repletas de abusos e maus-tratos, para campos de concentração, onde os detidos são isolados do mundo exterior, "desaparecidos", privados de representação legal e amontoados em celas superlotadas e fétidas.
Os prisioneiros nos campos de El Salvador são forçados a dormir no chão ou em confinamento solitário no escuro. Muitos sofrem de tuberculose, infecções fúngicas, sarna, desnutrição severa e doenças digestivas crônicas. Os detidos, incluindo mais de 3.000 crianças, recebem comida estragada. Eles sofrem espancamentos e são torturados, incluindo por waterboarding ou sendo forçados nus em barris de água gelada, segundo a Human Rights Watch. Em 2023, o Departamento de Estado descreveu o encarceramento como "ameaçador à vida", e isso foi antes de o governo salvadorenho declarar um "estado de exceção" em março de 2022. A situação foi "agravada", observa o Departamento de Estado, pela "adição de 72.000 detidos sob o estado de exceção". Cerca de 375 pessoas morreram nos campos desde que o estado de exceção foi estabelecido, parte da "guerra contra as gangues" do presidente salvadorenho Nayib Bukele, de acordo com o grupo local de direitos humanos Socorro Jurídico Humanitario.
Esses campos — o "Centro de Confinamiento del Terrorismo" (Centro de Confinamento do Terrorismo), conhecido como CECOT, para onde deportados dos EUA estão sendo enviados, abriga cerca de 40.000 pessoas — são o modelo, o prenúncio do que nos espera.
O metalúrgico e sindicalista Kilmar Ábrego García, sequestrado na frente de seu filho de cinco anos em 12 de março de 2025, foi acusado de ser membro de gangue e enviado para El Salvador. A Suprema Corte concordou com a juíza distrital Paula Xinis, que considerou a deportação de García um "ato ilegal". Autoridades do governo Trump culparam um "erro istrativo" pela deportação. Xinis ordenou que o governo Trump "facilitasse" seu retorno. Mas isso não significa que ele voltará.
"Espero que você não esteja sugerindo que eu contrabandeie um terrorista para os Estados Unidos", disse Bukele à imprensa em uma reunião na Casa Branca com Trump. "Como posso contrabandeá-lo — como posso devolvê-lo aos EUA? Tipo, eu o contrabandeio para os EUA? Claro que não farei isso... a pergunta é absurda."
Este é o futuro. Uma vez que um segmento da população é demonizado — incluindo cidadãos estadunidenses que Trump rotula como "criminosos domésticos" —, uma vez que são despojados da sua humanidade, uma vez que personificam o mal e são vistos como uma ameaça existencial, o resultado final é que esses "contaminantes" humanos são removidos da sociedade. Culpa ou inocência, pelo menos perante a lei, tornam-se irrelevantes. A cidadania não oferece proteção.
"O primeiro o essencial no caminho para a dominação total é matar a pessoa jurídica no homem", escreve Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo. "Isso foi feito, por um lado, colocando certas categorias de pessoas fora da proteção da lei e forçando, ao mesmo tempo, por meio do instrumento da desnacionalização, o mundo não-totalitário a reconhecer a ilegalidade; e, por outro, colocando o campo de concentração fora do sistema penal normal e selecionando os detidos fora do procedimento judicial comum, em que um crime definido acarreta uma pena previsível."
Aqueles que constroem campos de concentração constroem sociedades de medo. Eles emitem alertas incessantes de perigo mortal, seja de imigrantes, muçulmanos, traidores, criminosos ou terroristas. O medo se espalha lentamente, como um gás sulfuroso, até infectar todas as interações sociais e induzir à paralisia. Leva tempo. Nos primeiros anos do Terceiro Reich, os nazistas operavam dez campos com cerca de 10.000 detidos. Mas, uma vez que conseguiram esmagar todos os centros de poder concorrentes — sindicatos, partidos políticos, imprensa independente, universidades e as igrejas católica e protestante —, o sistema de campos de concentração explodiu. Em 1939, quando a Segunda Guerra Mundial começou, os nazistas istravam mais de 100 campos de concentração com cerca de um milhão de detidos. Os campos de extermínio vieram em seguida.
Aqueles que criam esses campos os divulgam amplamente. Eles são projetados para intimidar. Sua brutalidade é seu ponto de venda. Dachau, o primeiro campo de concentração nazista, não foi, como escreve Richard Evans em A Chegada do Terceiro Reich, "uma solução improvisada para um problema inesperado de superlotação nas prisões, mas uma medida planejada há muito tempo, que os nazistas imaginavam quase desde o início. Foi amplamente divulgado e relatado na imprensa local, regional e nacional, servindo como um aviso sombrio para qualquer um que pensasse em oferecer resistência ao regime nazista."
Agentes da Imigração e Alfândega (ICE) dos EUA, vestindo roupas civis e circulando por bairros em carros não identificados, sequestram residentes legais como Mahmoud Khalil. Esses sequestros replicam os que testemunhei nas ruas de Santiago, Chile, sob a ditadura de Augusto Pinochet, ou em San Salvador, capital de El Salvador, durante a ditadura militar.
O ICE está rapidamente se tornando nossa versão doméstica da Gestapo ou do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKVD) na URSS. Ele supervisiona 200 instalações de detenção. É uma agência formidável de vigilância doméstica que acumulou dados sobre a maioria dos estadunidenses, de acordo com um relatório compilado pelo Center of Privacy & Technology da Universidade de Georgetown.
"Ao ar registros digitais de governos estaduais e locais e comprar bancos de dados com bilhões de pontos de dados de empresas privadas, o ICE criou uma infraestrutura de vigilância que lhe permite montar dossiês detalhados sobre quase qualquer pessoa, aparentemente a qualquer momento", diz o relatório. "Em seus esforços para prender e deportar, o ICE — sem qualquer supervisão judicial, legislativa ou pública — ou conjuntos de dados contendo informações pessoais da vasta maioria das pessoas que vivem nos EUA, cujos registros podem acabar nas mãos da fiscalização de imigração simplesmente por solicitarem carteiras de motorista, dirigirem nas estradas ou se registrarem em serviços públicos para obter o a aquecimento, água e eletricidade."
Os sequestrados, incluindo a turca e estudante de doutorado na Tufts University, Rümeysa Öztürk, são acusados de comportamentos vagos, como "realizar atividades em apoio ao Hamas". Mas isso é um subterfúgio, acusações tão irreais quanto os crimes inventados sob o stalinismo, onde as pessoas eram acusadas de pertencer à velha ordem — kulaks ou membros da pequena burguesia — ou condenadas por conspirar para derrubar o regime como trotskistas, titistas, agentes do capitalismo ou sabotadores, conhecidos como "destruidores". Uma vez que uma categoria de pessoas é visada, os crimes de que são acusadas, se é que são acusadas, são quase sempre invenções.
Os detidos em campos de concentração são separados do mundo exterior. São desaparecidos. Apagados. Tratados como se nunca tivessem existido. Quase todas as tentativas de obter informações sobre eles são recebidas com silêncio. Até a sua morte, se morrerem sob custódia, torna-se anônima, como se nunca tivessem nascido.
Aqueles que istram campos de concentração, como escreve Hannah Arendt, são pessoas sem curiosidade ou capacidade mental para formar opiniões. Eles nem sabem mais, ela observa, "o que significa estar convencido". Eles simplesmente obedecem, condicionados a agir como "animais pervertidos". Eles ficam intoxicados com o poder divino que têm de transformar seres humanos em manadas trêmulas de ovelhas.
O objetivo de qualquer sistema de campos de concentração é destruir todas as características individuais, moldando pessoas em massas temerosas, dóceis e obedientes. Os primeiros campos são campos de treinamento para guardas prisionais e agentes do ICE. Eles dominam técnicas brutais projetadas para infantilizar os detidos, uma infantilização que logo distorce a sociedade como um todo.
Os 250 supostos membros de gangues venezuelanos enviados para El Salvador em desafio a uma ordem judicial federal foram privados do devido processo judicial. Eles foram sumariamente embarcados em aviões, que ignoraram a ordem do juiz para retornar, e, ao chegarem, foram despidos, espancados e tiveram as suas cabeças raspadas. Cabeças raspadas são uma característica de todos os campos de concentração. A desculpa são os piolhos. Mas, é claro, trata-se de despersonalização — e é por isso que usam uniformes e são identificados por números.
O autocrata celebra abertamente a crueldade. "Estou ansioso para ver os bandidos terroristas doentes receberem sentenças de 20 anos de prisão pelo que estão fazendo com Elon Musk e a Tesla", escreveu Trump no Truth Social. "Talvez possam cumpri-las nas prisões de El Salvador, que recentemente se tornaram tão famosas por suas condições adoráveis!"
Aqueles que constroem campos de concentração têm orgulho deles. Eles os exibem para a imprensa, ou pelo menos para os bajuladores que se am por imprensa. A secretária de Segurança Interna dos EUA, Kristi Noem, que postou um vídeo de si mesma visitando a prisão salvadorenha, usou os detidos de cabeça raspada e sem camisa como adereços para as suas ameaças contra imigrantes. Se o fascismo faz algo bem, é espetáculo.
Primeiro, eles vêm pelos imigrantes. Depois, pelos ativistas com visto de estudante estrangeiro em campi universitários. Em seguida, pelos portadores de green card. Depois, pelos cidadãos estadunidenses que combatem o genocídio israelense ou o fascismo crescente. Então, depois eles virão por você. Não porque você quebrou a lei. Mas porque a máquina monstruosa do terror precisa de um suprimento constante de vítimas para se sustentar.
Regimes totalitários sobrevivem lutando eternamente contra ameaças mortais e existenciais. Uma vez que uma ameaça é erradicada, eles inventam outra. Eles zombam do Estado de Direito. Juízes, até serem expurgados, podem denunciar essa ilegalidade, mas não têm mecanismos para fazer cumprir as suas decisões. O Departamento de Justiça dos EUA, entregue à bajuladora de Trump, Pam Bondi, é, como em todas as autocracias, projetado para bloquear a aplicação da lei, não facilitá-la. Não há mais impedimentos legais para nos proteger. Sabemos onde isso vai parar. Já vimos isso antes. E não é nada bom.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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