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Fernando Lionel Quiroga

É professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na área de Fundamentos da Educação. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação, Linguagens e Tecnologias (PPG-IELT) da Universidade Estadual de Goiás.

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O fetiche do "saber-fazer"

O “saber-fazer” virou produto midiático: do pragmatismo transformador à pedagogia performativa do mercado

Moedas de reais - 15/10/2010 (Foto: REUTERS/Bruno Domingos)

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O capitalismo contemporâneo, especialmente sob o regime cultural neoliberal, opera uma mutação surpreendente nas formas de aparecimento do trabalho e da produção de valor. Se em Marx a essência do valor — o trabalho humano abstrato, a "geleia de trabalho" — permanecia oculta sob a forma mercadoria, no capitalismo tardio ela reaparece espetacularmente como promessa didática, como mercadoria midiática em si mesma. Tal fenômeno inaugura o que aqui poderíamos chamar de fetichismo do saber-fazer, uma nova versão da velha mistificação capitalista.

Nesse ponto, é possível traçar um paralelo instigante — e inquietante — com a tradição do pragmatismo norte-americano, sobretudo na filosofia educacional de John Dewey. Dewey concebia o "fazer" (doing) como dimensão central da experiência educativa, recusando o intelectualismo ivo em favor de uma pedagogia ativa, experimental, imersa nos problemas do mundo real. Para Dewey, aprender é sempre um ato situado, prático, implicado no tecido da vida social — um fazer que transforma, emancipa, refaz o mundo.

Ocorre, porém, que o capitalismo neoliberal sequestrou este ideal pragmatista e o converteu em dispositivo mercantil. O "saber-fazer" não é mais expressão de uma experiência reflexiva e coletiva — tornou-se mercadoria midiática, conteúdo vendável, tutoriais infinitos de autogestão. Se para Dewey o fazer carregava potencial transformador e democrático, no presente o fazer é capturado pela lógica do desempenho individual, da produtividade incessante, do sucesso privado. O fazer pragmatista, radicalmente público e social, degrada-se em fazer performativo, fetichizado — um "fazer para si", saturado de promessa mágica, descolado da transformação das condições materiais de existência.

Assim, o que em Dewey era pedagogia da democracia torna-se, no neoliberalismo, pedagogia do mercado. A práxis educativa perde sua força crítica e ressurge como técnica de sobrevivência individual. O pragmatismo, destituído de seu horizonte coletivo, é domesticado pela razão instrumental do capital.

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O sujeito neoliberal é antes de tudo um empreendedor de si, como diagnosticaram Foucault (em suas aulas sobre biopolítica), e autores contemporâneos como Dardot & Laval e Byung-Chul Han. Não basta trabalhar, produzir ou consumir: é preciso gerir-se como empresa, cuidar da própria imagem, dos próprios dados, do próprio tempo, da própria afetividade como se fossem ativos de mercado. Não há fora possível: do morador de rua ao CEO da Google, todos estão (ou deveriam estar) em alguma etapa da "gestão de si".

Certa vez encontrei um homem em um semáforo segurando uma placa com os dizeres: "Quero ser empresário, mas tudo tem um início." Nem mesmo a extrema pobreza escapa à narrativa meritocrática: o desemprego, a precariedade, a informalidade violenta das ruas são ressignificados como fase inicial do self-made man. O fracasso não é mais social — é apenas uma curva ascendente ainda incompleta.

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É nesse cenário que emerge, quase inevitável, o império das plataformas de ensino do "fazer": YouTube, TikTok, Instagram não são apenas redes de entretenimento — tornaram-se máquinas pedagógicas globais, funcionando dia e noite para ensinar a ganhar, vender, aparecer, render, maximizar, aproveitar. O tutorial é hoje forma superior do saber popular. O "como fazer" já não é apêndice do conhecimento — é seu próprio núcleo mercantilizável.

O fazer, no entanto, não é mais expressão de uma práxis consciente e transformadora — ele se converte em espetáculo mágico. Como no fetiche da mercadoria descrito por Marx, o trabalho socialmente necessário para a produção de bens tornava-se invisível — mascarado sob a aparência da mercadoria pronta. Hoje ocorre o inverso: o fazer emerge, mas sob a forma encantada do segredo desvelado, da dica preciosa, do truque salvador. O oculto da produção (a "geleia de trabalho") retorna travestido de aula prática, curso relâmpago, microcoaching. Tudo é exposto, mas nada se revela.

O paradoxo dessa nova pedagogia do fazer é que, embora tudo se mostre — o o a o, o segredo revelado, a fórmula mágica —, nada de fato se revela, porque o tempo da exposição é comprimido, acelerado, cortado em fragmentos descartáveis, próprios da lógica das plataformas. O processo é achatado em tutoriais de segundos; os detalhes, amputados; as dificuldades reais do trabalho, apagadas em nome da promessa de facilidade imediata. O fazer se converte, assim, em simulação de fazer, em pura exibição performática — como se o labor humano, com suas incertezas, tentativas e erros, suas mediações e imes, houvesse sido abolido e substituído por um gesto limpo, direto, eficaz, quase mágico. A práxis, em vez de um campo de elaboração e transformação, vira espetáculo de instantaneidade. No fundo, como no fetichismo da mercadoria em Marx, permanece o segredo da produção — só que agora sob a forma de excesso de visibilidade que, paradoxalmente, oculta o real.

O truque neoliberal é perverso: o trabalho abstrato — aquilo que Marx queria denunciar — agora é vendido como promessa de realização plena. "Você também pode"; "basta fazer assim"; "descubra o segredo" — essas fórmulas não desvelam a estrutura, mas reforçam sua invisibilidade. A transparência é falsa: revela-se o gesto técnico, oculta-se a totalidade social.

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Em "O Capital", Marx descreveu como todo valor de troca repousa na substância espectral do trabalho humano abstrato — a "geleia" que une todas as mercadorias sob o disfarce de equivalentes. O sistema escondia essa substância para naturalizar o fetichismo mercantil.

Hoje, ao contrário, essa geleia retorna à superfície — mas de modo espectral, fantasmagórico. O valor do trabalho já não repousa em objetos (mercadorias) mas em performances visíveis: o influencer que mostra como investir, o coach que ensina a mentalidade do sucesso, o youtuber que revela segredos de edição, o trabalhador precarizado que expõe sua luta como oportunidade de ascensão. O conteúdo secreto do capital — o trabalho humano — é desvelado, mas apenas como espetáculo de autoaperfeiçoamento. O sujeito vê a maquinaria do valor, mas não como totalidade social contraditória — e sim como possibilidade individual mágica.

Esse processo é acompanhado de uma compulsão pela reprodução: ensinar a fazer tornou-se o próprio fazer. Vende-se curso sobre como vender cursos. O "fazer" é devorado por sua própria auto-referência infinita — como um loop sem saída que transforma toda produção em autoajuda técnica. A geleia de Marx, longe de dissolver a ilusão, alimenta os novos fantasmas do sucesso.

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O resultado é devastador. A pedagogia deixa de ser emancipadora e se torna mitológica. Ensinar a fazer não liberta do sistema — reinscreve o sujeito no ciclo encantado da mercadoria, agora sob a forma de dicas, hacks, segredos, revelações. O "como fazer" ocupa o lugar da crítica — e a prática do fazer substitui a luta política por estratégias de sobrevivência personalizadas.

A promessa não é mais libertação coletiva — é salvação privada. E o fracasso do sujeito não é mais uma consequência das contradições estruturais do capital — é déficit de técnica, de disciplina, de mentalidade. Como escreveu Fisher (em Realismo Capitalista), o sistema se completa ao fazer parecer que não há alternativa — e agora completa-se também ao sugerir que há um caminho individual mágico, bastando "fazer certo".

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O capitalismo avançado não mais oculta o segredo de sua reprodução — ele o exibe compulsivamente, como tutorial, como workshop, como live gratuita. Mas esse desvelamento não é denúncia — é magia, é espetáculo encantatório. A "geleia de trabalho" reaparece, mas em forma de performance midiática, de promessa de ascensão, de narrativa pessoal de sucesso. O velho fetichismo da mercadoria dá lugar ao novo fetichismo da práxis performada.

Esse é talvez o ponto mais sinistro da cultura atual: o oculto foi revelado — e nada mudou. O segredo do valor foi exposto — e a servidão intensificada. A transparência tornou-se a nova forma da opacidade.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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