Mitologias do Vigário I: escola, tecnologias digitais e democracia
A reflexão crítica sobre as tecnologias digitais não é apenas uma necessidade, mas uma urgência premente
"A tecnologia reforça uma falta de liberdade confortável e hoje se consolida como meio de pacificação de uma sociedade não pacífica." (Herbert Marcuse)
I
Qual é o enigma que permeia essa intrincada relação? Por que essa articulação clama por uma interpretação mais profunda e cuidadosa? A leitura imediata e, por conseguinte, superficial, que se faz dessa conexão evoca a noção de ibilidade das tecnologias no ambiente escolar — uma presença que, embora crescente, é supostamente garantida e democrática. Assim, é possível contemplar articulações como “Escola, direitos humanos e democracia” ou “Escola, saúde e democracia”. A ideia de que as democracias modernas são um projeto em constante construção carrega consigo uma noção de distribuição e inclusão em massa, um esforço para alcançar o que Walter Benjamin poderia chamar de "a emancipação da experiência". Nesse contexto, o direito ao o se torna inquestionável na lógica democrática. Ninguém se opõe à ideia de que educação e saúde, para citar o mínimo, são prerrogativas do Estado, devendo ser asseguradas por ele como um imperativo moral.
Pensar na escola, portanto, implica abraçar a universalidade do o. A premissa de que a escola deve ser laica, pública e gratuita é um consenso amplamente aceito, uma verdade que ressoa nas vozes da sociedade. No entanto, essa visão encontra resistência apenas na voracidade do mercado e na influência de lobbies que se infiltram nas interseções do governo, buscando formas de privatizar ou se apropriar do sistema educacional, manipulando a própria estrutura estatal em benefício de interesses particulares. O mesmo se aplica à saúde, onde o direito à vida e ao bem-estar é frequentemente colocado em xeque por forças que priorizam o lucro em detrimento do bem comum. Assim, a tensão entre o ideal democrático e as forças mercantis revela-se não apenas uma luta por recursos, mas uma batalha pela alma da própria sociedade.
II
A democracia, convenhamos, emerge como o instrumento pelo qual as camadas historicamente marginalizadas da população encontram, não sem dificuldades, os recursos necessários para almejar uma vida digna. É por meio da democracia que se possibilita a redução dos índices de mortalidade infantil, que a alfabetização se torna um marco da autonomia cidadã e que a erradicação ou controle de doenças como varíola, sarampo, poliomielite e rubéola se concretiza, garantindo, assim, a saúde de uma fração significativa da população. Nesse sentido, as minorias encontram na democracia um espaço de acolhimento e reconhecimento por parte do Estado.
Entretanto, a democracia não é um mero espaço de acolhimento; ela demanda uma práxis orientada para os menos favorecidos: indigentes, pessoas trans, desvalidos, deficientes, idosos, negros, povos originários, entre outros. Essa práxis, que anseia pela construção de uma sociedade mais inclusiva e justa, depende essencialmente da política. É pela política, em sua acepção mais ampla — como a ocupação voltada para o bem público — que se podem estabelecer pontes entre a exclusão e a inclusão, entre o invisível e o visível, entre a doença e a saúde, entre analfabetismo e alfabetização, entre desemprego e emprego.
Portanto, essa é a lógica que orienta as democracias, uma lógica que se desdobra em um compromisso ético e moral com a dignidade humana, desafiando as estruturas que perpetuam a desigualdade e clamando por uma ação coletiva que não apenas reconheça, mas também valorize a diversidade humana em sua plenitude. A democracia, assim, torna-se um espaço não apenas de direitos, mas de responsabilidades compartilhadas na busca por um futuro mais equitativo.
Entretanto, uma vez estabelecida essa base, torna-se imperativo que nos perguntemos: e quanto às tecnologias digitais? Aqui, emerge uma camada que exige uma reflexão mais profunda e crítica. Em primeiro lugar, é essencial distinguir entre tecnologias em geral e as tecnologias digitais — especialmente ao focarmos nossa análise em plataformas, redes sociais e inteligência artificial. Enquanto as tecnologias convencionais se apresentam de maneira mais direta, sujeitas à influência de seus usuários e aos modos de utilização, as tecnologias digitais ocultam suas influências e interesses internos, condicionando os usuários a seguir uma lógica algorítmica implacável.
III
Uma reflexão que antecede a noção de incorporação e ibilidade das tecnologias digitais nas democracias se faz necessária: o que são, de fato, as tecnologias digitais e quais são seus desdobramentos sociais? Nesse ponto, encontramos uma diferença radical em relação aos exemplos citados anteriormente. Enquanto nas tecnologias convencionais o sujeito se apropria delas, adaptando-as e sendo, ao mesmo tempo, moldado por seus interesses, nas tecnologias digitais esse processo não ocorre de maneira semelhante. A razão para isso reside no caráter ininterrupto e contínuo dessas últimas — o sujeito se apropria delas como quem adentra um trem em movimento, o que não permite reflexão, mas apenas confluência.
Além disso, elementos como a orientação maciça ao entretenimento, a crescente diminuição da dimensão escrita em detrimento da imagem e o design behaviorista corroboram essa distinção fundamental entre os tipos de tecnologia. Esse fenômeno não apenas transforma a experiência do usuário, mas também redireciona a própria dinâmica da interação social, moldando a percepção e a cognição de maneiras que desafiam as estruturas democráticas. Assim, devemos nos questionar: até que ponto essa confluência de interesses e influências molda não apenas nossa relação com as tecnologias, mas também a própria essência da democracia que pretendemos cultivar?
Dessa forma, surge uma questão fundamental: qual é a relação entre as plataformas digitais e a democracia? Elas realmente servem aos interesses democráticos ou, pelo contrário, estão minando suas bases? Ao analisarmos as incisivas teses de Cathy O’Neil sobre os “algoritmos de destruição em massa”, os alertas de Byung-Chul Han sobre o fim da ação discursiva em sua obra "Infocracia", e a crítica de Jaron Lanier sobre a produção em massa de viciados em jogos, a gravidade dessa situação se torna clara. Embora não aprofundemos aqui os danos cognitivos, como a diminuição da capacidade de atenção e o aumento da agressividade resultantes da nomofobia, bem documentados pelo pesquisador francês Michel Desmurget, e sem esquecer a filosofia da sensação de Christoph Türcke, é crucial que consideremos o profundo impacto que essas tecnologias têm em nossas vidas.
IV
Nesse contexto, é essencial ter em mente uma ideia simples, mas profundamente significativa: a associação entre escola e plataforma digital deve instigar um alerta crítico. Nesse entrelaçamento, há uma “pulga algorítmica” oculta — uma sutileza que demanda nossa atenção e reflexão. Mas, afinal, o que representa essa pulga? Quando nos deparamos com o clichê de que as tecnologias não são neutras, podemos reinterpretá-lo de forma mais incisiva: as tecnologias são, na verdade, ambíguas. Aqui, podemos articular uma fórmula: as tecnologias, especialmente as digitais, contêm tanto síntese quanto antítese, revelando uma estrutura de espelho que reflete não apenas os anseios, mas também as contradições da sociedade.
Entretanto, limitar-se a essa constatação é insuficiente. A ambiguidade das tecnologias se revela em sua dualidade: elas podem ser tanto ferramentas de emancipação quanto armas de opressão. Têm o poder de salvar vidas ou de ceifá-las; de libertar indivíduos ou de aprisioná-los; de mobilizar movimentos sociais ou de paralisá-los; de construir sociedades ou de destruí-las. Nelas habita o espírito de Prometeu: portador do fogo e do conhecimento sob a pena de viver acorrentado, simbolizando a relação paradoxal que estabelecemos com o progresso tecnológico. Dessa forma, essas ferramentas possuem o potencial de edificar projetos civilizatórios ou de erodi-los, promovendo a barbárie sob a fachada da modernidade.
A reflexão crítica sobre as tecnologias digitais não é apenas uma necessidade, mas uma urgência premente. À medida que navegamos por um mundo onde a linha que separa emancipação de opressão se torna cada vez mais tênue e indistinta, somos convocados à vigilância. Essa é uma chamada à ação para que não percamos de vista a responsabilidade ética que nos acompanha ao interagir com os dispositivos.
V
Portanto, uma observação mais central do que a simples afirmação de que as tecnologias não são neutras é esta: as tecnologias são, acima de tudo, políticas. Em sua estrutura imbricada, tanto nas tecnologias convencionais quanto nas digitais, esconde-se um potente campo de disputa. No que tange às tecnologias digitais, essa dinâmica é ainda mais acentuada, dada a monopolização por grandes conglomerados empresariais que controlam essas ferramentas, tendo o Vale do Silício como seu epicentro. Assim, mais do que buscar um equilíbrio aristotélico em seus usos, é imprescindível reconhecer o papel político que desempenhamos em relação às tecnologias.
A simples associação, que à primeira vista parece inocente, entre tecnologias digitais e democracia, revela muito mais do que a mera distribuição de artefatos tecnológicos na sociedade. E como a escola é a engrenagem mais elaborada para a reprodução das estruturas sociais, não é difícil entender por que as tecnologias digitais têm invadido esses espaços de maneira quase nauseante. Seria por uma razão em favor da democracia? Não se considerarmos os aspectos que discutimos até aqui. Essa preocupação se intensifica ao incluirmos fenômenos que recentemente têm crescido exponencialmente: fake news, linchamento digital, cancelamento, cyberbullying e guerras híbridas — elementos que impulsionam o ódio e a mentira no interior da própria estrutura democrática. Como podemos observar, tais aspectos, que atuam como armas nucleares em doses homeopáticas, não visam exterminar a sociedade, mas converter a democracia em uma servidão voluntária em massa. Profaná-la. Daí, torna-se imperativo compreender a dimensão ideológica que se oculta na dança orgiástica dos algoritmos e, mais do que isso, de que o debate sobre tecnologias digitais nas escolas constitua-se efetivamente com um debate político, considerando os desdobramentos e riscos a qual se vê submetida a própria democracia.
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