Misoginia institucionalizada: a violência política de gênero no Brasil
Ataques a Marina Silva revelam como o sexismo segue estruturando o poder no Brasil, afetando lideranças de diferentes partidos e trajetórias políticas
O episódio ridículo de ontem envolvendo a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, é mais uma cena vergonhosa do enredo previsível da política brasileira: o desrespeito público, cínico e impune a mulheres em posições de liderança. Durante uma audiência no Senado, Marina foi interpelada com grosserias e ironias por parlamentares que, ao serem cobrados por sua postura agressiva, tiveram a audácia de afirmar que “desrespeitavam a ministra, não a mulher”, como se fosse possível separar a mulher do cargo que ela ocupa. Como se o gênero não fizesse diferença na forma como ela é tratada, quando justamente é isso que define a maneira como ela é constantemente desrespeitada.
Não é mais um caso isolado. Esse tipo de atitude se repete o tempo todo, como se fosse algo normal. Mesmo mulheres com carreira sólida, reconhecidas nacional e internacionalmente, continuam sendo tratadas como se estivessem no lugar errado. Não importa o quanto estudem, trabalhem ou se dediquem: o simples fato de serem mulheres já é suficiente para que sejam diminuídas. Quando uma mulher fala com firmeza, é chamada de “histriônica”; quando é crítica, é “mal-amada”; quando é corajosa, é “desequilibrada”.
Não importa o lado político: ser mulher na política ainda é um desafio - O mais grave é que esse desrespeito acontece com mulheres de todos os partidos, de todas as ideologias. Parlamentares como Sâmia Bomfim, Talíria Petrone, Erika Hilton, Dandara Tonantzin, Duda Salabert, Gleisi Hoffmann, Jandira Feghali e a senadora Eliziane Gama enfrentam ataques recorrentes de dentro e de fora das instituições. São alvos frequentes de ameaças, comentários e insultos ofensivos que ultraam qualquer crítica política legítima. Mas o mesmo também acontece com deputadas da extrema-direita, como Carla Zambelli e Bia Kicis, que, mesmo alinhadas a um discurso conservador, muitas vezes são tratadas com desprezo por colegas homens, inclusive do próprio grupo político. Isso mostra que o problema não está nas ideias que elas defendem, mas no fato de serem mulheres. É como se, para muitos homens, o lugar da mulher não fosse na política, a não ser que estejam caladas ou subordinadas.
Esse tipo de comportamento não surgiu do nada. Antes mesmo de chegar à presidência, Jair Bolsonaro já atacava mulheres publicamente durante seu longo mandato como deputado federal. Foi ainda nesse período que protagonizou um dos episódios mais repulsivos da política brasileira ao ofender a deputada Maria do Rosário em plenário — um crime pelo qual foi condenado pela Justiça, tendo que pagar indenização por danos morais. Quem não se lembra também de quando ele se referiu ao nascimento da própria filha como uma “fraquejada”? Ao longo dos anos, Bolsonaro usou a mídia, entrevistas e programas de televisão para normalizar um discurso de ódio contra mulheres, apresentando esse comportamento como sinal de franqueza ou autenticidade. Já como presidente, continuou desqualificando jornalistas, debochando de servidoras públicas, ridicularizando a aparência de mulheres e alimentando uma cultura de desprezo. O mais grave é que parte da sociedade ou a tratar esse tipo de postura como aceitável ou até irável. As redes sociais se tornaram vitrines para esse padrão de agressividade, e muitos políticos seguiram o exemplo, acreditando que humilhar uma mulher diante das câmeras podia render aplausos, curtidas ou votos.
Antes de Marina, outras mulheres também foram atacadas por exercerem cargos importantes. Dilma Rousseff, a primeira mulher eleita presidente do Brasil, foi alvo de ofensas constantes. Não criticavam apenas suas decisões políticas, diziam que ela era nervosa demais, instável, mandona. E, como se não bastasse, a aparência também se tornou alvo. Criticavam seu cabelo, seu modo de se vestir, sua voz, sua postura. Houve até quem dissesse que ela se vestia “mal demais para ser presidente”. Uma mulher no comando do país parecia inável para muitos, e o ataque estético virou uma forma de desqualificação política. Isso vale para tantas outras que carregam no rosto, no corpo e na voz tudo o que o poder tradicional tenta reprimir.
No Ceará, por exemplo, Maria Luíza Fontenele foi a primeira prefeita eleita de Fortaleza, em 1985, e enfrentou um enorme isolamento político. Sem apoio da maioria dos vereadores, muitos de seus projetos foram barrados ou enfraquecidos, o que comprometeu sua capacidade de governar. Com o tempo, sua gestão ou a ser tratada como um fracasso absoluto, muitas vezes sem levar em conta o contexto. Ela acabou virando quase uma lenda urbana de péssima gestora. Uma imagem que se perpetuou por décadas na capital alencarina e foi usada como argumento para desencorajar a eleição de outras mulheres. Quando Luizianne Lins, anos depois, tentou e conquistou o mesmo cargo, enfrentou esse histórico como um peso simbólico. E, assim como Maria Luíza, foi alvo de piadas, ataques misóginos e comentários desrespeitosos. Em vez de se discutirem suas políticas públicas, era sua aparência, seu jeito de falar ou sua vida pessoal que entravam em pauta.
E esse padrão não atinge apenas mulheres eleitas ou nomeadas. A atual primeira-dama, Janja da Silva, tem sido alvo constante de perseguições, boatos e tentativas de deslegitimação desde que apareceu ao lado de Lula com postura ativa e voz própria, o que, para muitos, parece intolerável. O mesmo aconteceu com Maria Thereza Goulart, primeira-dama nos anos 1960, que foi atacada pela imprensa e pela elite conservadora da época por fugir do perfil de “recato e discrição” que se esperava da esposa de um presidente. E mesmo quem ocupou cargos centrais de poder, como Zélia Cardoso de Mello, primeira e única mulher ministra da Fazenda do Brasil, foi alvo de uma devassa midiática não apenas por suas decisões econômicas (que, de fato, foram duramente criticadas), mas também por sua vida pessoal, seus relacionamentos e sua aparência. Como se a mulher que ousa ocupar o centro do palco devesse antes pagar o preço simbólico por ousar estar ali.
O pior é que tudo isso acontece sem nenhuma consequência. Os agressores seguem em seus cargos, são aplaudidos por seus eleitores e ainda se sentem fortalecidos. Emitir uma nota de repúdio já virou rotina, mas de pouco adianta quando ninguém é responsabilizado. Parece que, dentro do Congresso, desrespeitar mulheres é visto como algo aceitável ou, no mínimo, sem importância. A misoginia virou moeda de troca. Quem grita mais alto contra uma mulher ganha palco. Quem desqualifica, sobe no palanque. E quem humilha, vira manchete.
Da violência simbólica ao voto consciente - Essa cultura de desprezo pelas mulheres na política é só uma parte de um problema maior. No Brasil, até 1962, as mulheres casadas eram legalmente subordinadas aos maridos. O Código Civil de 1916 estabelecia que o marido era o chefe da sociedade conjugal, e a esposa precisava de sua autorização para trabalhar, abrir conta bancária ou viajar. Essa realidade começou a mudar com a promulgação do Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/1962), proposto pelo senador Mozart Lago e sancionado por João Goulart, após forte articulação de mulheres como Romy Medeiros da Fonseca. Mesmo assim, a ideia de que o homem tem autoridade sobre a mulher continua viva na mentalidade de muitos brasileiros.
Além disso, por décadas, a tese da “legítima defesa da honra” foi usada nos tribunais para absolver homens que assassinavam suas companheiras, alegando que agiram para defender sua reputação. Essa justificativa só foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2023, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 779), proposta pelo PDT. O STF declarou, por unanimidade, que essa tese viola os princípios da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade entre homens e mulheres.
Para entender o tamanho desse problema, basta perceber que muitos ainda pensam como se a mulher fosse uma propriedade. A ideia de “dar uma lição”, “corrigir”, “calar”, seja no ambiente doméstico ou no plenário do Senado, vem dessa herança. A cultura do controle masculino sobre o corpo e a voz das mulheres está longe de ter acabado.
E isso se reflete diretamente na representatividade política. Apesar de as mulheres serem a maioria da população e do eleitorado brasileiro, sua presença nos cargos eletivos ainda é extremamente baixa. No Congresso Nacional, as mulheres ocupam apenas 18,1% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 19,8% no Senado. Nas Assembleias Legislativas estaduais, elas representam cerca de 18% dos parlamentares. No nível municipal, a situação é ainda mais preocupante: apenas 13% dos municípios brasileiros serão governados por mulheres a partir de 2025. Nas câmaras municipais, as mulheres ocupam cerca de 18,2% das cadeiras.
Esses números evidenciam um funil de exclusão que começa nas candidaturas e se aprofunda nas eleições. Embora a legislação brasileira exija que os partidos reservem 30% das candidaturas e do fundo eleitoral para mulheres, na prática, muitas vezes essas candidaturas são simbólicas, sem apoio real ou recursos suficientes. Além disso, propostas para reservar 20% das cadeiras nos legislativos para mulheres ainda enfrentam resistência e não foram implementadas.
Se a democracia é governo do povo para o povo, não pode continuar sendo palco de meia-democracia: aquela em que a metade feminina só assiste da plateia enquanto os homens decidem o futuro da nação. Por isso é tão importante que as mulheres votem com consciência. Elas são a maioria da população e do eleitorado. No entanto, poucas se sentem representadas na política — e com razão. A maioria dos partidos ainda coloca mulheres como candidatas apenas para cumprir regras de cotas, sem dar espaço real de liderança. Muitas mulheres que entram na política encontram um ambiente hostil, machista, feito para que desistam ou fiquem à margem. Para mudar isso, é preciso eleger mais mulheres comprometidas com os direitos das mulheres. E isso começa com o voto.
O caso de Marina Silva não é uma exceção. É mais um sinal de que a política brasileira ainda tem muito a evoluir quando o assunto é respeito. Quando uma ministra é humilhada publicamente, o ataque não é só a ela. É um ataque à ideia de que mulheres podem ocupar cargos de poder. É um recado claro de que: “você pode até chegar aqui, mas não vai ser levada a sério.” E isso é inaceitável. A misoginia na política é uma vergonha nacional e precisa ser tratada como tal.
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