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Paola Jochimsen

Paola Jochimsen é doutoranda em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestre em Romanistik pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Membro do Coletivo Brasil-Alemanha pela Democracia.

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Liberdade para quem? A abolição da escravidão e sua herança no Brasil de hoje

Essa escravidão contemporânea é também sustentada por um racismo estrutural

Escravidão nas colônias portuguesas (Foto: Adriano de Souza Lopes)

“LEI N. 3353 - DE 13 DE MAIO DE 1888 Declara extincta a escravidão no Brazil.

A Princeza Imperial Regente, em Nome de Sua Magestade o Imperador o Senhor D. Pedro II, Faz saber a todos os subditos do Imperio que a Assembléa Geral decretou e Ella sanccionou a Lei seguinte:

Art. 1º É declarada extincta, desde a data desta Lei, a escravidão no Brazil.

Art. 2º Revogam-se as disposições em contrario.

Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém.”

 

Antes da lei: a luta que precedeu a

Muito antes da da Lei Áurea por princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, milhares de pessoas já lutavam, resistiam e morriam pelo fim da escravidão. A abolição foi resultado direto de levantes populares, fugas em massa, quilombos, greves e campanhas conduzidas por homens e mulheres negros, libertos ou não, que enfrentaram o regime escravocrata com a própria vida. Essa verdade histórica ainda hoje é abafada por uma narrativa heroica e paternalista que glorifica a de uma princesa, como se a liberdade tivesse sido um presente gracioso da monarquia a um povo ivo.

O Ceará, por exemplo, já havia abolido oficialmente a escravidão em 25 de março de 1884, quatro anos antes da Lei Áurea. E não por decreto real, mas por pressão popular. Jangadeiros como Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, se recusaram a transportar escravizados para serem vendidos no sul do país. Sociedades abolicionistas, muitas lideradas por mulheres e por jornalistas, pressionaram políticos, organizaram alforrias coletivas, fizeram vaquinhas, libertaram centenas.

Entre essas mulheres destacam-se Maria Tomásia, Emília de Freitas, Francisca Clotilde e Ana Augusta, além das lideranças negras historicamente apagadas como Tia Simoa, Jovita, Maria da Ponte, Felícia, Balbina e Maria da Canção. Sua atuação foi decisiva para o sucesso do movimento abolicionista no Ceará, provando que a luta pela liberdade foi também liderada por mulheres, muitas delas negras e pobres. Também homens negros livres e instruídos desempenharam papel fundamental na campanha abolicionista em todo o país. Nomes como André Rebouças, José do Patrocínio, Luiz Gama e Francisco de Paula Brito articularam jornais, fundaram sociedades abolicionistas e enfrentaram a elite escravocrata com argumentos jurídicos, ações de alforria e resistência intelectual.

Na literatura, a denúncia da escravidão também encontrou espaço. Castro Alves, com seus versos incendiários em Navio Negreiro, tornou-se conhecido como “o poeta dos escravos”. Maria Firmina dos Reis, autora maranhense do romance Úrsula, foi a primeira escritora brasileira a apresentar uma crítica contundente ao regime escravista, a partir de uma sensibilidade feminina e negra. Sua obra permanece atual e essencial.

A resistência também veio de todos os lados. Desde o século XVII, os quilombos foram espaços de liberdade autônoma criados por pessoas fugidas da escravidão. Palmares, o mais conhecido, é símbolo dessa luta. Ainda hoje, milhares de comunidades quilombolas resistem em todo o Brasil, lutando pelo direito à terra, à memória e à dignidade. O 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, celebra a morte de Zumbi dos Palmares e se tornou, para muitos movimentos negros, uma data de maior significado do que o 13 de maio, pois representa a luta e não a concessão.

A abolição no Brasil não ocorreu em um vácuo histórico. O medo da elite brasileira diante da Revolução Haitiana (1791–1804), onde escravizados tomaram o poder e proclamaram a independência, foi um fator decisivo para a repressão de movimentos de liberdade. O Haiti se tornou um fantasma constante nas elites escravocratas do século XIX, que temiam que o “exemplo haitiano” inspirasse revoltas semelhantes em solo brasileiro. Esse medo moldou a maneira como a abolição foi conduzida: sem ruptura, sem redistribuição de poder, sem reparação. Quando a lei finalmente foi assinada no Rio de Janeiro, o Brasil foi o último país das Américas a abolir formalmente a escravidão. Mas o fez sem garantir nenhum direito aos ex-escravizados. Nada de terras, de indenização, de trabalho, de educação. Apenas o abandono e a exclusão.

 

Sem heroína, sem reparação: a falsa liberdade e o destino do povo negro

É preciso, por fim, desfazer o mito da princesa redentora. Isabel não era uma abolicionista convicta. Sua na Lei Áurea respondeu a pressões políticas intensas, ao risco iminente de revoltas populares e ao esgotamento do modelo econômico escravista. A monarquia não resistiria por muito mais tempo se não tomasse uma atitude. A abolição, portanto, foi mais um ato de sobrevivência do sistema do que de benevolência. Transformar a princesa em símbolo da liberdade é um desserviço histórico. Significa apagar a luta de tantos homens e mulheres negros que conquistaram essa liberdade com sangue, suor e resistência. É um gesto que infantiliza a população negra, como se tivesse sido libertada por uma figura branca redentora e benevolente, e não por sua própria ação política.

A verdadeira liberdade não se dá por decreto. Ela se constrói com políticas públicas, com reparação histórica, com justiça social. Enquanto o Brasil não enfrentar seu ado escravocrata com a seriedade que ele exige e não garantir condições dignas de existência ao povo negro, o 13 de maio seguirá sendo apenas uma data simbólica: um alívio para a consciência branca, mas uma farsa para quem ainda espera por sua verdadeira libertação. Se a da Lei Áurea não representou um ato de heroísmo, tampouco resultou em liberdade plena. A abolição sem medidas concretas de inclusão transformou-se em mais uma etapa do processo de exclusão. Se não houve heroína, também não houve reparação.

Ao serem “libertos”, muitos ex-escravizados foram lançados à miséria. Expulsos das senzalas, mas também impedidos de ar a terra ou qualquer reparação, formaram os primeiros bolsões de pobreza urbana. Os documentos de propriedade dos senhores foram queimados, não como um gesto simbólico de libertação, mas para impedir qualquer reivindicação futura. Não havia como provar quanto tempo de trabalho forçado havia sido imposto, nem havia qualquer chance de reparação. Era como se nada tivesse acontecido. A história da escravidão foi deliberadamente apagada, e seus protagonistas, os negros escravizados, relegados à marginalidade.

Essa ausência de políticas públicas estruturantes após a abolição foi um projeto. Um projeto de exclusão, que ressoou durante todo o século XX e ainda reverbera nas estatísticas do século XXI. Os mesmos corpos negros que antes estavam nas lavouras hoje estão nas periferias, nas prisões, nos subempregos e nos necrotérios. O racismo não terminou com a abolição — ele apenas se reinventou. Não é à toa que muitos pensadores contemporâneos, como Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez, denunciam a abolição como uma “liberdade inconclusa”. Afinal, como ser livre sem terra, sem renda, sem educação, sem nome, sem história?

 

A escravidão do presente: do capital às correntes invisíveis

O Brasil de hoje carrega, ainda, marcas de uma escravidão que persiste de formas mais sutis, mas não menos brutais. O trabalho análogo à escravidão ainda existe e não apenas nas zonas rurais remotas. De tempos em tempos, operações do Ministério do Trabalho libertam pessoas em fazendas, confecções clandestinas, oficinas de costura, carvoarias, ou até em mansões, onde trabalhadores domésticos são mantidos sem salário, sob vigilância e sem liberdade de ir e vir. Muitos desses trabalhadores são negros, nordestinos ou migrantes pobres.

Casos recentes incluem trabalhadores bolivianos mantidos em condições degradantes em oficinas em São Paulo, e brasileiros encontrados em situação análoga à escravidão em vinícolas no Sul do país, vivendo em barracões, sem salário, sem banheiro e sob vigilância armada. A escravidão, no Brasil, não é uma mancha do ado, é uma ferida aberta.

Além disso, vivemos sob uma lógica de produção que exige que pessoas dediquem suas vidas inteiras ao trabalho, sem tempo para o lazer, o pensamento ou o descanso. A precarização das relações trabalhistas, o aumento do trabalho informal, a uberização da economia e o esgotamento físico e mental dos trabalhadores refletem um novo tipo de servidão: uma escravidão moderna que se disfarça sob a ideologia do “empreendedorismo de si mesmo”. Quem não se adapta, é descartado. Quem questiona, é silenciado.

Essa escravidão contemporânea é também sustentada por um racismo estrutural. Não por acaso, os piores empregos, os salários mais baixos e as condições mais degradantes ainda recaem, majoritariamente, sobre os corpos negros.

 

Uma liberdade em disputa: avanços e desafios

Apesar desse histórico de exclusão e resistência, a população negra no Brasil conquistou, a duras penas, alguns avanços nas últimas décadas. A política de cotas raciais em universidades e concursos públicos representou um marco importante de reparação simbólica e o à educação. A equiparação do racismo a crime inafiançável e imprescritível, determinada pela Constituição de 1988, foi um o decisivo. E, mais recentemente, a Lei 14.532, de 2023, atualizou a Lei do Crime Racial para ampliar sua abrangência: agora, xenofobia, homofobia e transfobia também são legalmente reconhecidas como formas de racismo.

Essa ampliação do conceito jurídico é um reconhecimento de que a opressão racial no Brasil não se limita à cor da pele, mas atinge também migrantes, indígenas, populações LGBTQIA+ e outros grupos historicamente marginalizados. No entanto, esses avanços ainda são mínimos diante da profundidade da desigualdade histórica. São conquistas parciais, constantemente ameaçadas, que mostram que a liberdade para os negros, para os pobres, para os diferentes, continua sendo uma construção inacabada e permanentemente em disputa. Revisitar o 13 de maio, portanto, é não apenas revisitar a memória da abolição, mas renovar o compromisso com uma verdadeira libertação: concreta, coletiva e reparadora. A abolição foi um ponto de partida, mas a liberdade, no Brasil, ainda é um destino por alcançar.

 

 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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