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Ricardo Queiroz Pinheiro

Bibliotecário e pesquisador, militante do livro e leitura, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC)

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Funcionalismo: alvo fixo do desmonte

A mesma Folha que hoje aponta o risco de colapso por falta de técnicos é a que publicou a seguinte manchete: "Brasil bate recorde de servidores públicos"

(Foto: Divulgação)

Hoje a Folha de S. Paulo publica uma matéria denunciando a falta de servidores qualificados no Ministério de Portos e Aeroportos, o que pode travar dezenas de concessões e projetos de infraestrutura. É o tipo de alarme que, neste caso, revela uma realidade concreta: não há como fazer política pública sem gente. Sem quadro. Sem Estado.

O curioso é que a mesma Folha — com a mesma convicção sonora — tem publicado matérias acusando o "recorde" de servidores no Brasil, sem apresentar qualquer dado proporcional à população, às responsabilidades descentralizadas ou à carga de trabalho gerada por novas demandas. O que se afirma com alarde não é exatamente mentira, mas é uma meia verdade enviesada: o número cresceu nos municípios, em grande parte por causa da ampliação de serviços em educação e saúde, como prevê a Constituição. No governo federal, os números estão praticamente estagnados há mais de uma década.

O mesmo jornal que hoje aponta o risco de colapso por falta de técnicos é o que publicou em 2024 a seguinte manchete: "Brasil bate recorde de servidores públicos". Sem dizer que somos um dos países com menor proporção de servidores por habitante entre os membros da OCDE. Sem dizer que os servidores sem carteira assinada (temporários) são os que mais cresceram. Sem dizer que mais da metade das cidades brasileiras não têm sequer um médico efetivo.

Mais curioso ainda é quando se convocam comentaristas — como o sempre prestativo Fernando Canzian — para repetir que “só servidor defende a existência da máquina pública”. Afirmação maliciosa, que tenta desqualificar quem conhece a estrutura desde dentro, como se não houvesse interesse público, projeto de sociedade, modelo de Estado em disputa. Não se trata de opinião: trata-se de militância ideológica travestida de jornalismo. Canzian, pena amestrada dos Frias, escreveu isso sem rodeios na edição da Folha de 21 de agosto de 2022, afirmando com desdém que “os servidores são os únicos a defender a máquina”. Seu objetivo era o mesmo: desacreditar a estrutura pública e promover o velho receituário liberal.

Esse tipo de abordagem revela mais do que erro de método. Mostra um projeto de deslegitimação. Quando é para denunciar a lentidão, falta servidor. Quando é para cortar gasto, servidor é excesso. Quando é para privatizar, servidor atrapalha. O alvo é sempre o mesmo.

Por trás dessa retórica contraditória está o objetivo histórico de enfraquecer os serviços públicos para justificar a transferência de suas funções à iniciativa privada. Um Estado desmontado não é apenas ineficiente: é funcional à lógica da mercantilização. O que não é entregue pelo serviço público a a ser cobrado por fora, via contratos, concessões e terceirizações.

Esse movimento também está colado à ideologia do teto de gastos, que congela investimentos essenciais sob o pretexto de responsabilidade fiscal. Não por acaso, na própria matéria da Folha que denuncia o "apagão de servidores", a resposta do governo é tímida, atravessada por amarras fiscais que desautorizam a reposição de pessoal mesmo diante de um colapso funcional iminente.

A realidade, no entanto, é teimosa. Os dados mostram que o funcionalismo brasileiro não só não está inchado, como é um dos que menos cresceu nas últimas décadas. A Pnad Contínua mostra que os aumentos ocorreram nos últimos anos exclusivamente no nível municipal, impulsionados por necessidades concretas e por uma população que segue crescendo e envelhecendo. O serviço público não é gasto, é investimento. Mas isso exige um jornalismo disposto a lidar com complexidade, não com slogans.

A manchete de hoje da Folha escancara a contradição: quando falta gente, o Estado para. O funcionalismo não é um privilégio. É condição de funcionamento da democracia.

O apagão no funcionalismo não é acidental, nem apenas fruto de desorganização istrativa. É parte de um arranjo estruturado para enfraquecer o Estado, comprometendo a capacidade de confecção, implantação e execução de políticas públicas. Isso é sentido nos três entes da federação: no âmbito federal, com a estagnação e terceirização; nos estados, com a precarização e os pacotes de ajuste; e principalmente nos municípios, onde as políticas ganham concretude. Ali, a escassez de servidores é sentida diretamente pelo cidadão, que vê a UBS com fila, a escola sem apoio, o CRAS vazio. E ainda ouve, nos telejornais e colunas, que o problema é o excesso.

Trata-se, em síntese, de uma engrenagem articulada: o discurso do inchaço justifica o congelamento de concursos; o congelamento esvazia a capacidade do Estado; o enfraquecimento abre caminho para a privatização e terceirização; a mídia chancela e reproduz esse ciclo, ao mesmo tempo em que finge espanto diante dos sintomas da ausência estatal que ela mesma ajudou a construir. É nesse vácuo que se impõem soluções de mercado para problemas coletivos. E assim, com manchetes que ora inflam, ora lamentam, se constrói a opinião que entrega a esfera pública aos interesses privados.

Links para as principais referências citadas:

Folha de S.Paulo - Apagão de servidores compromete concessões e infraestrutura

Folha de S.Paulo - Brasil bate recorde de servidores

Folha de S.Paulo - Estabilidade no Brasil vs. Suécia

Folha de S.Paulo - Coluna de Fernando Canzian (21/08/2022)

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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