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Paola Jochimsen

Paola Jochimsen é doutoranda em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestre em Romanistik pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Membro do Coletivo Brasil-Alemanha pela Democracia.

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Crise de confiança: o fracasso de Merz e os fantasmas da extrema-direita na Alemanha

Pela primeira vez desde o pós-guerra, um candidato a chanceler falha em sua primeira tentativa de ser eleito

Novo chanceler da Alemanha, Friedrich Merz, durante conferência do partido CDU em Berlim - 28/04/2025 (Foto: REUTERS/Lisi Niesner)

A derrota de Friedrich Merz na primeira votação para chanceler da Alemanha, ocorrida no Bundestag (Parlamento Federal) em 6 de maio de 2025, marca um ponto de inflexão na política do país. Mesmo com a vitória eleitoral de sua coalizão CDU/CSU-SPD (União Democrata-Cristã/União Social-Cristã – Partido Social-Democrata) em fevereiro e uma confortável maioria de 328 assentos, mais que os 316 necessários, Merz obteve apenas 310 votos. Pela primeira vez desde o pós-guerra, um candidato a chanceler falha em sua primeira tentativa de ser eleito. Não se trata de uma simples falha de cálculo: o episódio expõe as rachaduras de uma política que tenta se equilibrar entre alianças frágeis, promessas impraticáveis e um eleitorado cada vez mais desconfiado.

A Constituição alemã prevê, no artigo 63, um prazo de 14 dias após a primeira votação para que o Bundestag (Parlamento Federal) eleja um chanceler com maioria absoluta. Caso isso não aconteça, há uma terceira e última rodada, onde basta maioria simples. Se nem nessa rodada o nome indicado alcançar os 316 votos, o presidente da República, Frank-Walter Steinmeier, pode decidir entre nomeá-lo mesmo assim ou dissolver o parlamento e convocar novas eleições. Nunca, em 75 anos de República Federal, o país esteve tão próximo desse tipo de ime institucional.

O que levou à derrota de Merz? Para além das contas parlamentares, há uma crise de fundo mais profunda — política, simbólica e ética. A coalizão entre conservadores e sociais-democratas revelou-se frágil. Apesar do acordo formal, há divergências gritantes sobre como conduzir a economia, lidar com a crise climática, enfrentar a imigração e, sobretudo, reconfigurar a posição internacional da Alemanha num cenário global cada vez mais instável.

Os conflitos na Ucrânia e na Faixa de Gaza não apenas dividiram opiniões dentro do parlamento, como também expam a dificuldade de Merz em formular uma política externa clara e equilibrada. Enquanto parte da CDU defende alinhamento automático com Washington e com o governo de Netanyahu, setores do SPD e dos Verdes exigem posturas mais críticas e humanitárias. A perspectiva de um novo mandato de Donald Trump nos Estados Unidos acentuou ainda mais as tensões, pois muitos parlamentares temem um reposicionamento forçado da Alemanha num eixo de alianças cada vez mais volátil. Diante disso, parte da bancada social-democrata, tudo indica, decidiu votar contra Merz, mesmo sem declarar publicamente. Foi um sinal silencioso de desconfiança — não só diante de sua proposta de um pacote trilionário de investimentos financiados por dívida pública, mas também diante de sua hesitação estratégica em tempos de encruzilhada geopolítica.

Mas há algo que vai além da economia. Merz, embora visto como herdeiro da tradição conservadora, jamais conseguiu ocupar o espaço simbólico que Angela Merkel, a “Mutti” (mamãe) da política alemã, deixou. Na tentativa de reconquistar o eleitorado perdido para a extrema-direita, Merz endureceu o discurso sobre imigração e segurança, aproximando-se perigosamente da retórica da AfD (Alternative für Deutschland – Alternativa para a Alemanha). Propostas como a restrição de benefícios sociais a estrangeiros e o uso do termo “identidade nacional” causaram desconforto até dentro da CDU. A própria Merkel, em uma rara e firme intervenção, criticou abertamente a “linguagem do medo” que voltava a assombrar o partido.

A extrema-direita volta ao centro e a esquerda perde o fio da resposta - A estratégia de Merz para conter a AfD parece ter produzido o efeito contrário: a extrema-direita voltou ao centro do debate. À época das eleições, o partido ainda não havia sido oficialmente classificado como uma ameaça comprovada à ordem democrática pelo Bundesamt für Verfassungsschutz (Escritório Federal para a Proteção da Constituição), embora já estivesse sob vigilância como caso suspeito. Mesmo após a intensificação do monitoramento, a AfD continua legalmente autorizada a disputar eleições, já que a proibição de partidos na Alemanha depende de decisão do Tribunal Constitucional Federal e exige a comprovação de ameaça real à democracia. Sem esse impedimento formal, a legenda emergiu das urnas como a segunda maior força política do país, impulsionada por um discurso nacionalista, xenófobo e anticorrupção. Agora, com o fracasso de Merz, ganha ainda mais fôlego. Alice Weidel, líder da legenda, pede novas eleições e se apresenta como a verdadeira alternativa ao “sistema corrompido”.

Caso novas eleições sejam convocadas, um dos elementos mais imprevisíveis será o destino da Die Linke (A Esquerda). A crise da coalizão governista pode, em tese, abrir espaço para que a legenda se reposicione como voz crítica e coerente diante do desgaste tanto da direita tradicional quanto do SPD. No entanto, o partido continua enfrentando os dilemas que historicamente limitam seu alcance nacional. Disputas entre setores mais ideológicos e alas pragmáticas dificultam a formulação de uma estratégia unificada. Apesar desses imes, o fracasso das coalizões tradicionais criou uma janela rara: diante da descrença nas grandes siglas, a Die Linke pode sair do isolamento e disputar o protagonismo político com propostas concretas frente à crise social e democrática que se aprofunda.

Os sinais mais recentes mostram que essa possibilidade não é mera especulação. Nas últimas eleições, a Die Linke surpreendeu ao conquistar 8,8% dos votos e 64 assentos no Bundestag — um desempenho expressivo que marca sua recuperação no cenário nacional. Ainda mais significativo: o partido foi o mais votado entre os eleitores de 18 a 24 anos, com 25% desse segmento, indicando um enraizamento renovado entre as novas gerações. Se conseguir transformar esse capital simbólico e geracional em estratégia política coesa, poderá se tornar a principal alternativa à esquerda do espectro. 

O futuro da democracia alemã em jogo - A Alemanha vive um paradoxo. Embora suas instituições se mantenham sólidas, a fragmentação partidária e a impaciência social fazem crescer uma polarização que, embora mais discreta que a brasileira, não é menos inquietante. O país que se orgulhava de ter domesticado os fantasmas do autoritarismo agora os vê rondando novamente. O caso recente do grupo extremista Reichsbürger (Cidadãos do Reich), que planejava um golpe de Estado, não é um desvio isolado — é sintoma de uma radicalização subterrânea, mas persistente.

O momento exige mais do que fórmulas institucionais. Exige clareza de propósito, coragem para contrariar interesses de curto prazo e disposição para enfrentar a radicalização política com mais do que alertas morais. O fracasso de Merz não é apenas a queda de um nome, mas o reflexo de um sistema que, ao tentar agradar a todos, já não convence ninguém. E é nesse vácuo que prosperam os que prometem rupturas autoritárias travestidas de salvação nacional.

A Alemanha, que desenvolveu um processo exemplar de Vergangenheitsbewältigung (a superação do ado) para confrontar os horrores do nazismo, hoje parece hesitar diante das ameaças democráticas do presente. Estudos indicam que, em regiões como a antiga Alemanha Oriental (RDA), essa confrontação histórica foi menos intensa, o que pode ter contribuído para o ressurgimento de ideologias extremistas. Não por acaso, é justamente nesses estados do Leste que a AfD domina eleitoralmente, convertendo ressentimentos sociais e desilusão política em votos.

Essa força não se explica apenas por ideologia, mas por um acúmulo de feridas abertas desde a reunificação. Muitos cidadãos da antiga RDA se sentiram deixados para trás pelo Estado unificado: perderam empregos, viram suas economias locais desmanteladas e suas experiências de vida deslegitimadas. A desigualdade persistente — com salários mais baixos, menor infraestrutura e menos oportunidades — alimenta a percepção de exclusão. Além disso, a confiança nas instituições democráticas e na mídia permanece baixa. A AfD capitaliza esse ressentimento, apresentando-se como a voz dos “esquecidos”, e encontra terreno fértil especialmente onde a memória do autoritarismo foi menos criticamente elaborada. É como se parte da sociedade tivesse se distanciado das lições mais fundamentais do século XX. E nós, brasileiros, sabemos bem onde esse esquecimento pode levar: ao culto de “salvadores” da pátria, à erosão de uma sociedade democrática e, por fim, à corrosão das próprias instituições.

O futuro imediato depende de como os partidos tradicionais vão reagir: se reafirmam compromissos democráticos com um novo nome de consenso ou se apostam em eleições que podem aprofundar a crise e abrir ainda mais espaço para os extremistas. Uma coisa é certa: a Alemanha de hoje já não é a da era Merkel. O país se encontra em uma encruzilhada histórica. O modo como atravessará esse ime não definirá apenas a nova liderança, mas o próprio rumo da democracia europeia.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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