Autópsia da perseguição opaca em democracia
O perigo da perseguição opaca é ar despercebida à maioria da população
Desde, pelo menos, a Antiguidade clássica, as diferenças entre a ditadura e a democracia são claras, inequívocas, tão evidentes quanto a diferença entre a água e o azeite. Em teoria. Na prática, as diferenças, sobretudo nos tempos de hoje, são muito mais complexas. Tomemos o exemplo da perseguição contra as ideias proibidas/ilegais, pelos detentores do poder. Em teoria, em democracia não há ideias proibidas/ilegais salvo as que constituam crimes de difamação. Na prática, as coisas são mais complexas. A ditadura é transparente na perseguição dos que professam ideias proibidas/ilegais pelos detentores do poder. A democracia é opaca. A perseguição transparente consiste, entre outros, na proibição de partidos políticos, ausência de direitos fundamentais e de garantias processuais, dependência política dos tribunais, elenco oficial de ideias proibidas/ilegais e punição de quem as professa (censura, crimes de opinião, presos políticos). A perseguição opaca não usa – pelo menos, oficialmente – nenhum destes instrumentos que, aliás, estão constitucionalmente proibidos no Estado democrático. A opacidade reside em que se pode obter objetivos semelhantes por meios aparentemente totalmente distintos (e mesmo contrários) dos utilizados na perseguição transparente.
O perigo da perseguição opaca é ar despercebida à maioria da população. Se não for democraticamente combatida, pode facilmente transformar-se em perseguição quase-transparente, isto é, tolerada ou mesmo promovida pelo próprio Estado constitucionalmente democrático, e aceite com indiferença por parte da maioria da população. A partir de certo patamar de tolerância ou de promoção de perseguição opaca é legítimo itir que, mesmo sem mudanças constitucionais, o regime político democrático mudou e se transformou num regime híbrido entre democracia e ditadura, uma democradura ou uma ditamole. Vejamos as condições para a perseguição opaca e alguns dos mecanismos privilegiados para a levar a cabo, uns de origem imemorial, outros muito recentes.
As condições
A criação da ameaça externa. A ideia moderna do Estado-nação assenta em dois pilares fundamentais: soberania e cidadania. Ambos são princípios tanto de inclusão como de exclusão. O princípio da soberania valida o conceito de ameaça externa. Nos nossos dias, a ameaça externa de eleição na União Europeia é a Rússia, enquanto nos EUA são a China, o Irão e a Coreia do Norte. Como em todos os períodos prévios a uma guerra, a ideia da ameaça externa intensifica-se e transforma-se no eixo central da política do país. A partir desse momento de polarização, questionar a política da ameaça transforma-se num ato de traição. O questionamento torna-se um ato perigoso, por definição, e quem o formula é, por definição, perigoso. A periculosidade pode justificar a neutralização de quem questiona por meios informais, legais, alegais ou mesmo ilegais, os quais, no fundo, significam a violação das garantias constitucionais.
A criação do inimigo interno comum. O outro pilar da ideia moderna do Estado-nação é a cidadania. A ideia do Estado-nação contém um artifício pouco notado: ao contrário do que crê o senso comum, não foram as nações que construíram os Estados, foram os Estados que construíram as nações. E a construção da nação sempre esteve dependente dos interesses de quem dominou o Estado. Por isso, muitos grupos sociais que viviam no espaço geopolítico do Estado foram excluídos da nação: minorias (às vezes, maiorias) étnicas ou religiosas, escravos, mulheres, imigrantes. A cidadania foi sempre tanto um princípio de inclusão como de exclusão. Os excluídos foram sempre potencialmente inimigos internos e a sua conversão efetiva dependeu do oportunismo de quem detém o poder do Estado no momento. Neste momento, na Europa e nos EUA, o inimigo interno comum de eleição é o imigrante, sobretudo se for muçulmano. O inimigo interno comum vigia-se, controla-se, e expulsa-se consoante as conveniências do momento. A legalidade ou ilegalidade com que tudo isto é feito depende de uma multiplicidade de fatores.
A criação do inimigo político interno. Trata-se daqueles indivíduos ou grupos/partidos cujas ideias são consideradas pelo poder político de tal modo perigosas que não merecem ser protegidos pelas garantias próprias do estatuto de cidadania e da Constituição. Depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA e seus aliados estiveram muito ativos na caracterização dos partidos comunistas como inimigos políticos internos, sobretudo nas Américas e na Europa Ocidental. Os casos da Grécia, da Alemanha (a berufsverbot, proibição profissional para “extremistas”, 1972) e da Itália são particularmente significativos. Neste momento, assistimos a uma ampliação do conceito de inimigo político interno extremamente preocupante. A extrema direita global, hoje liderada por Donald Trump e Benjamin Netanyahu, começa a estender o conceito de inimigo político interno a todos os intelectuais com pensamento crítico e a todos os partidos de esquerda. O inimigo político interno ou põe em perigo interesses (sobretudo econômicos) das classes que dominam o Estado ou é suspeito de estar ao serviço de um inimigo externo e com isso agravar a ameaça externa. Ao contrário do que se a com o adversário político, com o inimigo interno político não se dialoga, silencia-se, condena-se sumariamente e declara-se a sua morte civil.
Os instrumentos da perseguição opaca
As condições acima referidas são alguns dos sintomas de mudanças mais amplas na (des)ordem capitalista colonialista global que não posso analisar aqui. Em geral, elas agravam a incompatibilidade entre a democracia liberal e a acumulação capitalista. Em trabalhos anteriores, defendi que nas sociedades capitalistas a democracia liberal é sempre uma ilha de democracia num arquipélago de despotismos. Caracterizei tais despotismos como formas de fascismo societal e concluí que as sociedades contemporâneas são politicamente democráticas e socialmente fascistas. Penso que estamos a entrar num período diferente em que o fascismo societal se vai transformando num fascismo político de tipo novo. A perseguição opaca é um dos sinais dessa transformação. Vejamos os seus principais instrumentos.
A perseguição não é explicitamente política. Salvo casos extremos, como os que estão correndo nos EUA de Donald Trump, as ideias proibidas ou ilegais nunca surgem como motivo explícito da perseguição. A perseguição dos defensores de tais ideias ocorre por motivos não políticos, por atos que congregam grande consenso na sociedade, em termos de condenação ética ou jurídica. Os atos atualmente privilegiados são os abusos sexuais, a corrupção e a segurança do Estado. O caso mais tristemente famoso da última década foi o de Julian Assange, onde se combinaram as acusações de abusos sexuais (a invenção de um assédio sexual cometido contra duas mulheres suecas) e de atentado à segurança do Estado (a wikileaks).
A segurança do Estado foi sempre o motivo privilegiado pelas ditaduras para perseguir os opositores. A sua utilização crescente pelos Estados democráticos é um dos sinais claros de degradação da convivência democrática. A construção da ameaça externa e do inimigo político interno é particularmente utilizada em períodos de preparação para a guerra. Quanto aos abusos sexuais e à corrupção, sempre foram condenáveis nas sociedades democráticas e puníveis nos termos da lei. A perseguição opaca serve-se disso para maximizar a estigmatização social dos autores de ideias proibidas/ilegais. Utiliza para isso dois mecanismos principais: a invenção, a descontextualização ou dramatização desproporcionada dos “fatos” e a seletividade da repressão. O universo dos abusadores sexuais e dos corruptos tem uma dada cor política que raramente é notada e, quando o é, é tratada como pura coincidência.
As duas infrações de eleição têm razões históricas e de economia política. A luta contra os abusos sexuais sempre esteve na agenda dos democratas que consideram o patriarcado como uma das principais dominações modernas, ao lado do capitalismo e do colonialismo. Os movimentos feministas vieram dar uma nova visibilidade aos abusos sexuais e uma nova intensidade à sua condenação. Acontece que o neoliberalismo infiltrou esses movimentos de uma ideologia neo-puritana e utilizou-os para invisibilizar a luta de classes e para dividir os grupos em luta contra a injustiça social. O capitalismo deixou de ser o inimigo principal para ar a ser o homem heterossexual. Obviamente que esta infiltração foi parcial e só atinge uma parte do grande movimento de libertação das mulheres e das orientações sexuais. Trata-se do que hoje se convencionou chamar de feminismo neoliberal, composto em geral por pessoas fenotipicamente brancas e de classe média.
Quanto à corrupção, a sua relação com a economia política do neoliberalismo é de intimidade porque foi com o neoliberalismo que se intensificou a promiscuidade entre o mundo político e o mundo econômico. A corrupção está hoje normalizada em toda a atividade política e atos ainda considerados como corrupção em certos países são atos legais noutros países. É o caso do financiamento privado oculto e sem limites de partidos políticos, que é proibido nos países europeus e permitido nos EUA. A corrupção é assim uma atividade que o neoliberalismo conhece bem e que instrumentaliza para manter no poder político os que são leais aos seus interesses e retirar do poder ou impedir que cheguem ao poder os que são hostis ou menos leais a esses interesses.
A perseguição é conduzida pela “sociedade civil” ou pelos órgãos “não políticos” do Estado – os tribunais. A sociedade civil é mobilizada de múltiplas formas. Os meios de comunicação e as redes sociais são os amplificadores privilegiados da “gravidade” dos atos e da perseguição aos seus autores. No seu seio surgem empresários da perseguição, muitas vezes inconscientes do serviço que prestam aos verdadeiros mobilizadores e seus interesses. Vêem-se como arautos de uma causa nobre e esse é um componente fundamental da opacidade da perseguição. O objetivo da guerra mediática é transformar as denúncias em condenações de modo a que os objetivos de neutralização de quem é perseguido de forma opaca sejam conseguidos antes de qualquer iniciativa de defesa. Os danos profissionais e pessoais tornam-se definitivos e irreparáveis, mesmo que se prove mais tarde a falsidade das acusações.
As Organizações Não-Governamentais (ONGs) desempenham um papel fundamental na perseguição opaca precisamente porque qualquer leitura superficial da sua missão identifica a nobreza, o desinteresse e o universalismo dos seus objetivos. A defesa da democracia e dos direitos humanos servem de verniz legitimador dos verdadeiros propósitos. As ONGs mais empenhadas na perseguição opaca são muitas vezes financiadas internacionalmente por centros de interesse vinculados à defesa do neoliberalismo e à neutralização dos seus inimigos.
Os tribunais são o órgão de soberania considerado não político e defensor das garantias constitucionais, do primado do direito, da regularidade do processo judicial e da presunção de inocência. Tudo isto aponta para que só os casos reais de abuso sexual ou de corrupção ou de atentado contra a segurança do Estado sejam punidos, e que sejam punidos todos e não apenas alguns. Esta é a teoria, mas a prática é bem diferente. Temos vindo a assistir a dois fenômenos preocupantes.
O primeiro é a crescente percepção de que os tribunais são muito mais dependentes da opinião pública do que se pode imaginar. E são-no sobretudo nos casos em que esta opinião cria consensos que ultraam as habituais divisões políticas. Esta dependência, além de contradizer a independência dos tribunais, põe em causa a eficácia das garantias processuais e, sobretudo, a presunção de inocência. Nestas condições, a denúncia (por vezes anônima) nos meios de comunicação e nas redes sociais constitui a condenação, e a ação dos tribunais não é mais do que ratificar a condenação. Tal só não acontece quando a opinião pública se divide antes ou durante a intervenção dos tribunais. Daí o interesse dos vigilantes da perseguição opaca em que tal divisão não ocorra.
O segundo fenômeno é o que se designa por judicialização da política e cujo reverso é a politização da justiça. Trata-se do recurso da classe política (ou dos seus clientes políticos) aos tribunais para obter resultados políticos. Por exemplo, o afastamento de um político influente ou a derrota eleitoral de um partido considerado favorito, mas hostil aos interesses de quem tem poder para mobilizar os tribunais. Também aqui uma das características da judicialização é a sua seletividade. Tende a operar com mais eficácia sempre que se trata de promover objetivos politicamente conservadores. Deve notar-se que o neoliberalismo tem investido muito na “formação de magistrados” em muitos países, nomeadamente com “cursos de especialização” ou “viagens de estudo” em universidades e outras instituições norte-americanas. As investigações que fiz a partir da década de 1990 indicavam que os magistrados do Ministério Público eram o alvo privilegiado desta política de “formação”. Posteriormente estendeu-se a todas as magistraturas.
A perseguição opaca exige uma equação complexa entre periculosidade e ilegalidade das ideias
A perseguição opaca assenta na ideia de que certas ideias são perigosas por contrariarem significativamente os interesses dos detentores do poder político e seus aliados e, por essa razão, devem ser tratadas como ilegais, mesmo que em democracia o conceito de ideias proibidas ou ilegais tenha limites muito precisos e, em princípio, não haja ideias perigosas. A perseguição opaca exige que tais limites sejam ultraados por meios indiretos de repressão, liminais ou a-legais, entre legalidade e ilegalidade, e por massivas campanhas de doutrinação e de desinformação. Um exemplo disso é o conceito de anti-semitismo que hoje nos EUA (e em parte na Europa) foi resignificado para abranger qualquer crítica ao Estado de Israel, por mais hediondos que sejam os crimes de lesa humanidade cometidos por Israel contra o povo mártir da Palestina. O objetivo da desinformação é legitimar a repressão, invertendo a equação entre a periculosidade e a ilegalidade das ideias: enquanto para os detentores do poder as ideias são perigosas e por isso devem ser ilegalizadas, a opinião pública é levada a crer que as ideias são ilegais por serem perigosas.
A perseguição é global
A perseguição opaca faz parte de um projeto global de degradação da convivência e das instituições democráticas. A crise da acumulação capitalista neoliberal globalizada é hoje evidente e manifesta-se a vários níveis, muito para além do protecionismo, das tarifas e da divisão em blocos rivais. Manifesta-se na polarização política, no crescimento da extrema direita entre as classes populares frustradas, ressentidas e sem esperança, na política do ódio, no espetáculo da violação das linhas vermelhas da convivência democrática na esfera pública, na gradual substituição do secularismo pela religião politizada. A Internacional do ódio e da polarização conservadora usa os meios que os gigantes norte-americanos da alta tecnologia de informação e de comunicação põem ao seu dispor para silenciar ou eliminar o pensamento crítico, vigiando as comunicações e os movimentos dos ativistas sociais e dos pensadores críticos, os mídia alternativos, vasculhando a privacidade dos alvos para acionar no momento certo o processo de cancelamento, silenciamento, enfim, a morte civil dos defensores de ideias consideradas proibidas ou ilegais, e até dos veículos de comunicação que utilizavam. As “listas negras” de ideias, de autores e de veículos de comunicação a cancelar são internacionalmente distribuídas aos mídia hegemônicos de diferentes países, às polícias de investigação e até a ONGs que se dispõem a colaborar por considerar que tal cancelamento pode favorecer os seus objetivos pretensamente progressistas. Esta é a dimensão mais opaca da perseguição porque é difícil saber quem são os agentes de uma perseguição que, sendo nacional, é rapidamente internacionalizada, quem são os seus colaboradores internos e como se difunde de modo fulminante a desinformação. É sobretudo difícil saber como é mobilizada gente de boa fé para causas que julgam ser nobres sem ter consciência dos verdadeiros objetivos que estão por detrás delas. Quanto aos centros da Internacional do ódio e da polarização, há razões para crer que sejam os EUA de Donald Trump e Israel de Benjamin Netanyahu.
Da perseguição opaca à perseguição transparente
A distinção entre perseguição opaca e perseguição transparente não é sempre tão nítida como aqui descrita. Há situações liminais que criam fenómenos híbridos de perseguição opaca e de perseguição transparente. Assim sucede, por exemplo, quando os defensores de ideias ilegais são estrangeiros. As ideias ilegais são nesse caso facilmente consideradas duplamente ilegais: ideias ilegais de pessoas ilegais. Outro mecanismo de liminalidade é a declaração de estados de emergência que suspendem as garantias constitucionais dos perseguidos. Um terceiro mecanismo é a criação de zonas alegais, cinzentas, onde a discricionariedade dos agentes é constitutiva da aplicação da lei. Tais zonas são, por exemplo, os aeroportos e os serviços de imigração.
Conclusão
Produzir a morte civil dos alvos da perseguição opaca e descredibilizar as suas ideias são os dois mecanismos do cancelamento. As ideias podem continuar a ser publicadas, mas deixaram de ter influência política, tanto pela descredibilização dos autores, como pela marginalidade dos veículos de comunicação em que são publicadas, se é que chegam a ser publicadas.
O perigo fundamental da perseguição opaca reside no facto de a sua opacidade impedir que ela seja combatida como perseguição política, e, portanto, com recurso aos meios democráticos de confrontação política. Trata-se de uma forma perversa de politização que actua como despolitização, submetendo os seus alvos ao mais profundo isolamento. Qualquer solidariedade pública com esse alvo pode produzir o cancelamento de quem se solidariza. A solidão em democracia tem um estigma muito mais profundo que a solidão em ditadura. Mas é precisamente essa solidão e a consequente impossibilidade de criar oposição democrática que favorece o deslize da democracia para a ditadura que caracteriza o nosso tempo.
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